Por Wagner Fraga Friaça*
Como em uma “jornada do herói” parto nestas linhas em busca de vencer a um enorme desafio de elaborar uma crítica sobre uma série fotográfica que circula nas redes sociais, produzida pelo Fotógrafo João Rios neste ano de 2020, que conta a história da evolução da COVID19 a partir das manchetes do jornal Correio Braziliense dos domingos. Para além de uma série fotográfica artística, na minha opinião trata-se de um importante documento histórico que, em um futuro distante, quando toda a pandemia passar, poderá ser revisitado por pesquisadores interessados em conhecer os acertos e erros da imprensa, e compreender como era a narrativa da evolução dos fatos. Apreciando a sequência de imagens da série fotográfica, e conversando com seu autor, recordei-me que, na minha adolescência, lá pelo início dos anos 70, vim do Rio de Janeiro morar em Brasília em uma das quadras da Asa Sul destinada para militares. Meu pai era sargento da Aeronáutica e havia sido transferido para a nova capital, que contava então com apenas uma década de existência. Como muitos brasileiros - cada um na sua profissão -, aquele tipo de migração ajudava a consolidar a instalação da capital no centro do país e meu pai desembarcou com minha mãe e quatro filhos. Em outro ponto da cidade, na Ceilândia, e no mesmo período inicial dos anos 70, o menino João Rios acabara de fazer a mesma jornada com seus pais e irmãos, mas vindo do Maranhão. De realidades diferentes, João Rios, vendia bilhetes da Loteria Federal na rua, pois precisava daquele dinheirinho em um tempo em que a sociedade tolerava o trabalho remunerado das crianças. E é justamente das ruas que surge uma afinidade comum, daqueles tempos, entre eu e João Rios, ainda que nós sequer soubéssemos um da existência do outro: aos domingos bem cedinho, por volta das seis e meia, sete horas da manhã (quem é das antigas vai se lembrar), éramos acordados com a musicalidade da voz de crianças da nossa idade com um canto que ecoava pelas superquadras do Plano Piloto e nas quadras da Ceilândia, como de resto em toda a cidade: “_ Olhaêêêê oo Correeeiooo!”. * Wagner Fraga Friaça é bacharel em Publicidade e Propaganda, com especialização em Marketing e Comunicação; Repórter Fotográfico; Psicanalista; e Técnico Legislativo do Senado Federal. Eram meninos que, como João, precisavam do dinheirinho vindo do comércio de rua. Eram vendedores do Correio Braziliense que adotavam aquele canto matinal como marketing de vendas daquele jornal. João Rios relembra isso com emoção na voz. E achava chique os homens que recebiam o Correio Braziliense em casa. No seu imaginário infantil, supunha serem homens ricos, de bigodes, bem resolvidos financeiramente, chefes de família. Esse imaginário se fortalecia ainda mais quando via fotos de alguém lendo o jornal, bem cedinho, na mesa farta do café da manhã – a refeição mais chique do dia em sua opinião. Essa sensibilidade na percepção do ambiente que o cerca não é novidade para aqueles que conhecem o Fotógrafo João Rios, e ela o influencia muito particularmente na sua predileção em clicar passarinhos, costumando ensinar que, assim como a lente aponta para espiar o o passarinho, ele – o passarinho - também tem a curiosidade de ficar espiando quem é aquele ser estranho, esgueirando-se na mata para ficar apontando uma coisa para ele. No jargão dos fotógrafos, João é um “passarinheiro”. E dos bons, tendo publicado alguns livros de fotografia e realizado algumas exposições com esse tema. A essa personalidade sensível, soma-se uma outra característica que é muito marcante no seu jeito de ser: João é também um brincalhão por natureza; como se costuma dizer: perde o amigo, mas não perde a piada! E é com essa pegada brincalhona que, sempre que me cumprimenta, lá vem ele com seu jeitão: “_ Oi feinho!” - ao que eu devolvo na hora: “_ Fale aí, mais feio!”. Credito esse tratamento mútuo a um certo jeito carinhoso, fruto de uma bela amizade iniciada há quase trinta anos. Mas... eis aqui um paradoxo: o paradoxo entre o “belo”, que adjetivei a amizade, e o “feio”, presente no chiste usado no tratamento mútuo que travesti aqui de carinho. Isso me levou a refletir um pouco sobre o belo presente na série fotográfica de João Rios. Como um bom passarinheiro, ele se permitiu voar para outros galhos em busca de bons frutos. Inquieto e com uma inspiração arguta, desde o mês de maio, em que todos no planeta já vínhamos isolados em casa por conta da pandemia da COVID-19, que João Rios se desafiou a alçar um voo para este projeto fotográfico, ainda sem título, que segue em pleno andamento e que, pelo visto, 3 deve durar por uns bons meses: como eu comentei no início destas linhas, trata-se da história da evolução da COVID-19 contada a partir das manchetes do jornal Correio Braziliense dos domingos. “_ Puxa!” – diriam os menos sensíveis à arte da fotografia – “logo a COVID, essa coisa tão feia para a humanidade?” A essa pergunta eu responderia com outra: existe algo mais subjetivo do que a busca da definição do que venha a ser o “belo”? Se recorrermos a um dicionário de filosofia, veremos que belo é aquilo que suscita um prazer desinteressado produzido pela contemplação e pela admiração. Mas a subjetividade dessa definição é tamanha que desde logo nos mostra a complexidade do desafio de destrinchar esse conceito. Kant – que no século XVIII ficou mais conhecido por sua trilogia à razão – ousou discorrer sobre a subjetividade do belo, e afirmou que essa percepção resultaria de uma concordância harmoniosa entre uma forma imaginada para exprimir uma ideia, e uma ideia concebida para ser expressa por uma forma. (Aff, que trem complexo...). Vamos então pra bem antes. No século XIII, Tomás de Aquino disse que o belo era uma qualidade real das coisas; era uma qualidade inerente a elas. E mais longe ainda, na Grécia Antiga, cerca de 500 anos antes de Cristo, Platão discursou sobre o belo dizendo que um juízo de beleza só é possível de ser enunciado quando esse juízo não possui um interesse no objeto que se está considerando. Achei melhor, então, buscar o pensamento sobre o belo nos críticos e teóricos das artes e da fotografia nessa minha tentativa de responder se estaria o belo em uma série fotográfica sobre a COVID-19. Susan Sontag, que foi escritora e crítica de arte, teceu comentários ácidos nesse tema em seu livro Sobre Fotografia: “ninguém jamais descobriu a feiura por meio de fotos” – disse ela. E prosseguiu: “Ninguém exclama: ‘Como isso é feio! Tenho de fotografá-lo’. Mesmo se alguém o dissesse, significaria dizer o seguinte: ‘Acho essa coisa feia... bela”. Susan é enfática ao opinar que é pelas fotos que se descobre a beleza. Mas há um ponto em que, quando aprecio a série fotográfica de João Rios sobre a COVID-19, sou levado a divergir dela: é quando Susan Sontag insinua, em uma de suas ressalvas, que, para ela, nas ocasiões em que a câmera é usada para documentar ou para observar ritos sociais, o fotografo não é movido para descobrir algo belo. Como eu já registrei aqui, considero a série fotográfica de João Rios um documento histórico, com a vantagem de que o belo está ali presente, e por isso prossigo neste texto para demonstrá-lo, divergindo de Sontag nesse particular. É fato que um Fotógrafo especializado em Fotografia de Rua ou mesmo um Repórter Fotográfico (Fotojornalista) tem a dura missão de fazer o registro fotográfico da realidade sem “dourar a pílula”. A foto, nesse caso, conta a história real, sendo necessária certa sensibilidade para se encontrar, no duro registro, o belo. Mas ele está lá, acreditem, na estética, na composição, ou no ângulo mais adequado – às vezes um ângulo diferenciado, buscado com a motivação proposital de apenas insinuar a dureza da cena sem mostrá-la explicitamente, como documento fotográfico que é. Sobre esse tema, o reconhecido Fotógrafo de Rua David Gibson, por exemplo, usa uma técnica bem sugestiva para inspirar aqueles que desejam se iniciar na Fotografia de Rua, mas que sentem dificuldades em perceber o belo nessa vertente da Fotografia: pegar um ônibus e observar o mundo passar pela janela. Uma atitude simples e óbvia que termina por treinar o nosso olhar para perceber o belo nos pequenos detalhes e nos fatos mais corriqueiros do dia-a-dia, quer seja olhando as pessoas, as vias públicas, a arquitetura urbana. A opinião simples das pessoas que apreciam uma fotografia também é relevante para a rotulação do que é ou não é belo. A série fotográfica de João Rios iniciou-se em pleno Dia das Mães, domingo, 10 de maio com a seguinte manchete gigante e única na metade superior da capa do jornal: “10.627 Mortos”. Com essa primeira fotografia publicada em grupos sociais da família, João já levou uma saraivada de críticas, que destaco apenas uma delas como ilustrativa: “_ Dar uma notícia triste dessas logo no dia da festa? [do Dia das Mães] – ao que João retrucou: “_ Não fui eu [que dei a notícia], foi o jornal”. A dureza da notícia – feia - em princípio pareceu, a esse observador que fez o comentário simples, ter desfocado o belo que ali está presente: a composição refinada que o autor da imagem teve o cuidado de criar para o registro. Há uma intensão proposital de esconder o leitor 5 do jornal para manter um segredo – uma curiosidade - sobre a identidade do fotografado, na imagem clicada; frente a dor da notícia, há uma imagem da Santa Ceia ao fundo, na parede, como se trouxesse o conforto para os que tiveram as perdas noticiadas; a garrafa de café e a caneca personalizada, também em destaque na foto, sobre uma toalha de mesa estampada em vermelho, traz de volta aquela representação do imaginário de João Rios em sua infância, sobre a qual já me reportei aqui, de alguém lendo o jornal, bem cedinho, na refeição mais chique do dia: o café da manhã. Ou seja, se a notícia é feia, neste ponto volto a me alinhar com Susan Sontag: “acho essa coisa feia... bela”. Os poetas também discorrem sobre o belo, mexendo com nosso imaginário. E são incontáveis os exemplos - para todos os gostos, sobretudo nas letras de músicas. Armandinho, em “Desenho de Deus” recitou que “quando Deus te desenhou, ele tava namorando”, num poema de completa entrega e afirmação da beleza de sua amada. A dupla Cleber e Cauan passou perto dessa inspiração em “Quase”: “se Deus fez outra de você, tá decorando a casa d’Ele. Ele não vai deixar descer; é uma minha, a outra d’Ele.” Caetano Velozo, por sua vez, também ousou no tema: “esta canção é só pra dizer, e diz: você é linda, mais que demais, você é linda sim. Onda do mar do amor, que bateu em mim.” Assim é que, os que admiram a criatividade fotográfica, passaram a aguardar, a cada domingo, um café com João Rios, em um projeto fotográfico em plena construção que, visivelmente, busca o minimalismo estético lado a lado com duras manchetes: “Construção civil deve liderar recuperação pós-pandemia”; “Ciência decidirá data das eleições municipais”; “Parques e igrejas do DF reabrem na quarta-feira”; “GDF fecha comércio e proíbe eventos em Ceilândia e Estrutural”; “Ibaneis fecha Esplanada após ameaça de radicais”; “50 mil mortes numa guerra longe de acabar”; “Brasil fecha acordo para ter a vacina já neste ano”; “Ricos fretam jatinhos para tratar covid. Pobres sofrem nos hospitais”; “O DF está no pico da covid. Após o platô vem a desaceleração”; “Descaso com isolamento faz covid avançar no DF”; “Juiz suspende volta às aulas na rede particular”. Mas para alguém como eu - que defende que a arte de João Rios, em sua série fotográfica, é arte que se traduz em documento – o escritor Philippe Dubois, em O Ato Fotográfico vem me deixar em apuros ao relembrar as palavras do poeta e teórico da arte francesa CharlesPierre Baudelaire (século XIX), que colidem com meu pensamento. Disse Dubois: 6 “Baudelaire recoloca com clareza a fotografia em seu lugar: ela é um auxiliar da memória, uma simples testemunha do que foi. Não deve principalmente pretender ‘invadir’ o campo reservado da criação artística. (...) Para Baudelaire, uma obra não pode ser ao mesmo tempo artística e documental, pois a arte é definida como aquilo mesmo que permite escapar do real”. Ainda bem que, desde o século XIX de Baudelaire, o pensamento sobre a Fotografia já avançou bastante. “A imagem quer ser signo e obra”, disse o escritor e crítico de arte François Soulages no século seguinte, em seu livro Estética da Fotografia – Perda e Permanência. Exausto nessa busca tão controversa, chego à conclusão de que a resposta para o “belo” está mesmo no íntimo de cada observador. Em verdade penso que aquele poeta francês, em razão do período histórico em que viveu, talvez estarrecido com o surgimento da Fotografia poucos anos após o seu nascimento, não esteve errado ao negar que uma obra pudesse ser, ao mesmo tempo, arte e documento. Mas diante da série fotográfica de João Rios, Baudelaire deve ficar no seu lugar de honra na história, como registro do pensamento daquela época. E é nesse mesmo viés, insisto, que afirmo que a série fotográfica artística e documental de João Rios terá igualmente o seu lugar reservado para a história que será contada sobre estes tempos de hoje. O lugar em que o belo registra o feio, sendo - o feio - o fato, e o belo a forma encontrada por João Rios para fazer o seu clique, de forma artística e documental. * * *
コメント